Por Pedro Henrique Marum
Depois que vi a notícia da morte de David Bowie hoje de manhã, a primeira coisa que eu fiz foi ir olhar de novo o clipe de ‘Lazarus’, divulgado no final da semana passada. E eu sei que todo mundo ficou impressionado com o verso inicial da canção, onde Bowie diz que está no céu. No que é agora mais que claramente uma carta de despedida à música, aos fãs, ao mundo e si mesmo, não foi essa parte que me saltou aos olhos.
E eu vou ser bem honesto: não sou qualquer tipo de especialista em música. Demorei muito mais que deveria para conhecer Bowie apropriadamente e ainda considero que deixo a desejar, deveria saber muito mais. A primeira coisa que conheci dele, na real, foi ‘The Man Who Sold the World’ na voz de Kurt Cobain. Em seguida, conheci ‘Heroes’. Por muito tempo, foi só isso. Mas eu conheço o bastante hoje para dizer que o londrino de Brixton foi talvez o músico mais inventivo, mais criativo e menos acomodado do século XX. Que desde estourar fora da Terra com ‘Space Oddity’ nunca parou e jamais foi o mesmo. Havia uma inquietude artisticamente fundamental a ele, inerente a gênios fazedores de arte de todas as gerações.
Não à toa, os vários estilos de Bowie fuzilaram com ideias, conceitos e liberdades até então inexistentes basicamente todos os músicos influentes dos últimos 50 anos. De Madonna ao Oasis, do Nirvana à Lady Gaga, de Marilyn Manson a Kanye West. A fonte de Bowie é praticamente interminável e passa pelo rock clássico, pelo jazz, pelo pop, pelo R&B, pelo eletrônico e pelo que mais você quiser. Pelo sexo, pelo espaço, pela vida e pela morte, pela dança, pelas drogas.
Antes de voltar ao início do texto, vou visitar outra coisa que passou pela minha cabeça hoje mais cedo. As duas partes têm ligações, mas eu quero fazer essa referência antes. Em 2002, Warren Zevon descobriu que tinha um câncer terminal. Zevon foi um músico excepcional que viveu como tal. O diagnóstico rapidamente se tornou público, e Zevon rejeitou tratamentos fortes que debilitariam sua saúde de forma a impedir que ele fosse ao estúdio para um último álbum. ‘The Wind’ é, bem como ‘Blackstar’, um adeus brilhante. Warren trouxe amigos, Bruce Springsteen entre eles, e saiu de cena com uma joia. Ganhou dois prêmios Grammy pelo álbum, ambos póstumos.
Em outubro de 2002, logo após ter confirmado o diagnóstico, Zevon foi convidado para ir ao ‘Late Show’. David Letterman era seu fã confesso e até o chamou para substituir Paul Shaffer como líder da World’s Most Dangerous Band/CBS Orchestra em ocasiões especiais. A entrevista é uma das melhores da história do programa, mas uma citação específica ficou famosa. Letterman perguntou se, na situação em que se encontrava, Zevon sabia alguma coisa sobre vida e morte que as outras pessoas talvez desconheçam.
Não, a não ser o quanto você deve aproveitar cada sanduíche.
Zevon fez aquele dia o que foi sua última apresentação ao vivo. Ele estava morto dentro de 11 meses.
Ao ouvir ‘Lazarus’ hoje pela manhã, me impressionaram as duas vezes em que, seguindo afirmações de que vai estar livre agora, Bowie pergunta ‘Ain’t that just like me? – Isso não é a minha cara?’. É a cara dele.
É perfeito e a forma mais David Bowie possível de sair de cena. É claro que para nós, meros fãs, dói mais a notícia da morte porque não esperávamos. O grande público não sabia da luta contra um câncer há um ano e meio, o que deu a oportunidade dele ser Bowie uma última vez em vida. Deixar uma carta de despedida obscura, mas clara e brutal. Dar o adeus a todo mundo do seu jeito sem que alguém percebesse. Se despedir com calma de família e amigos e de nós, fãs. Transformou a morte em poesia. Tem como ser mais Bowie?
Espero que, assim como Zevon, Bowie tenha aproveitado o último sanduíche da forma como viveu sua vida e construiu seu mito. Tenho poucas dúvidas de que foi assim.